Prefácio



No ano de 1980 quis escrever um livro de odes que se organizasse numa relação quiasmática com os prelúdios e fugas d'O Teclado Bem Temperado, de Bach.

Que obra infinita!

Que obra maravilhosamente infinita, onde não há um compasso, uma transição, um nada que seja supérfluo, desnecessário ou frouxo e onde não se formam paisagens que não sejam dignas do maior enlevo e da maior admiração!

Não há outra música que possa ser sentida, do mesmo modo que esta, como uma oração perpétua.

Porque tudo aí se ergue para cantar a glória dos céus, desde o pequeno lírio até à imensa montanha, desde a mais humilde ervinha das estepes até às galáxias monumentais que se movem no firmamento. Não há outra música que nos diga, como esta, que Deus não é feito só de sublime e de imensidão, mas de pequeníssimos nadas, de quase imperceptíveis acontecimentos, de ínfimas, insignificantes acções de graças.

Não que eu pretendesse sequer alçar-me a uma tal grandeza.

Como Bach, apenas Espinosa.

Dessa grandeza me bastava a alegria pontual e o dom, por assim dizer, de ser tocada momentaneamente por ela.

Porque a mim a quem talvez nunca seja permitido compreender um Deus, a mim sempre me sobrará o sabor amargo do exílio.

No primeiro livro, que intitulei Azul e Vermelho, escrevi os poemas de amor por F. de Riverday.

F. de Riverday, a rapariga de azul e vermelho.

De seu nome verdadeiro, Catarina Terra. A quem encontrei pela primeira vez no jardim de Santa Catarina, dormindo, deitada num banco de jardim.

Escrevi essas linhas de Azul e Vermelho escandidas em ritmos alternados de dez e seis sílabas, como é habitual nas odes de Camões, cujo ritmo decidi decalcar como quem decalca um desenho com recurso a uma folha transparente de papel, isto é - toscamente. Porque as odes, na nossa tradição, são a forma eleita da evanescência, por isso as escolhi.

Não há ode que não traga em si, ainda que de um modo subliminar, um canto de despedida. Talvez por isso o seu ritmo tenha a qualidade de um embalo, de uma história para adormecer. Para amortecer o choque.

Nesses Prelúdios escrevi apenas a verdade, isto é, escrevi sobre aquilo que vivi. Porque, ao contrário do que dizem certos poetas e teóricos que pretenderam abolir da literatura o valor das biografias e confissões, eu e a minha querida amiga Françoise sempre tivemos uma predilecção por biografias, confissões e vidas de nómadas, vagabundos e santos.
 
Escrevi portanto estas confissões dentro do modelo camoniano da ode clássica, com a fixidez rítmica e constrangimento rimático que lhe são próprios - uma experimentação a propósito da qual só me ocorre a imagem do surf, apesar de nunca ter feito surf.

Escrever debaixo de um espartilho clássico (uma ode, um soneto, uma canção), sob a obrigação dos sons escandidos, rimados e medidos, um por um, isto é, escrever sob a tirania de um ritmo mais ou menos previsível, a única imagem que me faz surgir é a de alguém que se põe de pé na prancha para correr sobre o mar com a onda.

Porque temos aquele ritmo no centro do corpo, um ritmo abstracto e implacável que é como a força mutável do mar, um vazio para os sons obrigatoriamente coincidentes que é como o frio das águas geladas.

Temos, como é que poderei dizer, esse meio, e essa oposição. Ao mesmo tempo uma via e um obstáculo.

E depois há o desejo de uma força que nos ultrapassa e combina, como porventura combina com o mar o corpo de pé em cima da prancha, com uma força exterior. Um querer pôr-se de pé. Uma coisa tão forte que tem de vir à tona para surfar aquele ritmo escandido, como se fosse um sobrevoo.

Enquanto a compomos, a frase avança extremamente devagar, sempre com aquela agrura da oposição aos meios naturais, aquele perigo, aquela incerteza, mas com uma pulsão própria. Mas quando a lemos por inteiro, a frase revela uma velocidade que estava escondida ou inacessível, uma intensidade que de repente é posta a nu.

É como um meio de transporte poderoso, a desbravar o espaço do ritmo.

Não somos nós.

É um vento que nos sopra por trás, uma rajada que nos segura de pé, uma linha que já lá estava e por onde por acaso parece que vamos.

E não deixa de ser curioso. Sempre, antes de alguma coisa acontecer, aquele vazio... aquele deserto... E aquela angústia. Igual para a palavra que encaixa no ritmo que a ela se opõe e igual para a palavra que se inventa, e que sai directamente da sensação, como um rebento. A incrível sensação do vazio - de um vazio total.

Mas eu queria ainda outra coisa.

Queria voltar a trabalhar com uma linguagem o mais desagregada possível, queria voltar a pisar aquele chão macio e movediço das palavras-corpo, palavras-fémur ou palavras-fígado, palavras que são balões de gás, cortes, interrupções, pancadas, contusões, danças ou voos que podem fazer fluir e esbater os gritos e as vozes.

Poderia ainda voltar a fazê-lo?

Não seriam essas palavras os produtos extremamente perigosos de uma loucura subtil, de uma desagregação interior que cambaleava como um acrobata cego à beira do caos e da morte?

Valeria a pena correr uma vez mais um tão grande risco?

Bach, como se sabe, escreveu o Teclado Bem Temperado com o propósito de demonstrar que a divisão da escala em doze partes iguais (sistema temperado) servia tão bem as formas musicais mais rígidas (fugas), como as formas mais livres (prelúdios).

Porque é que me acontece a mim que nas formas mais rígidas o fluxo se liberte, ao ponto de preferir chamar às odes, prelúdios, e aos outros poemas, fugas?

Nas fugas, apesar da fórmula rígida a que obedecem, produz-se também um estranho efeito de lançamento por acumulação, de aceleração e de libertação progressiva, ainda que se trate de um fluxo em suspensão, como as poeiras das galáxias.

Como explicá-lo?

Há uma afinidade, ou melhor, uma igualdade subjacente, entre a intensidade de um movimento extremamente lento, mas suspenso e contínuo, fluído, e um movimento extremamente rápido, mas igualmente contínuo.

É uma sensação nítida, mas, como todas as sensações, trazê-la para o mundo é talvez mais difícil do que transpor com um engenho um buraco negro.

Pode acontecer o mesmo no amor sexual quando, de aproximação em aproximação, de carícia em carícia e de invenção em invenção se passa a um novo patamar, a um novo estado intensivo do corpo. 

Do mesmo modo, de cada vez que surge o tema na fuga ele sofre uma mudança cumulativa de intensidade, de qualidade e de coloração. É como se cada entrada do tema nos transportasse a um outro plano, a um outro êxtase. E a nossa alma (que neste caso é o mesmo que o nosso corpo) sente-se percorrer um espaço infinito com a velocidade de um cometa.

É necessário submetermo-nos a este tipo peculiar de exercício que obriga à maior torção, ao maior esforço - e à maior revelação.

Quem me dera poder interceptar com o prelúdio e a fuga, estas duas formas paradoxalmente constritas e libertas (duas formas extremas, por assim dizer), a sensação única do azul e do vermelho!

Duas cores que são, na sua infinita conjugação possível, precisamente como a intensidade ao mesmo tempo física e abstracta de estar apaixonada por F. de Riverday.
 
 
 

Mark Rothko, «Sem Título», 1948, colecção de Kate Rothko Prizel